Natal nos trópicos

Natal nos trópicos

Et verbum caro factum est, et habitavit in nobis.

Joh. I, 14

Era uma vez, era um dia, era uma tarde encantada: …sozinha em casa absorta cismando, a menina da Conceição, mineira da Serra por nome Maria, solteira, doméstica, longos cabelos lisos encarvoados, carnudinha abacinada, blusa aberta, risonha desmaliciosa (ei! que é que Maria faz?), entre a camisa engomada e a saia por plissar (e a poeira nos móveis, Maria?), sem nem cogitar, só de cansaço e mania de devaneios vai, inventa pausa e deixa voar janela afora, mundo afora, no ar azul da tarde, o olhar de uns olhos negros que só vendo, ali sozinha, a esquerda enganchada no quadril, sobre a cômoda um vaso de dálias amarelas, natureza morta?, natureza viva!, e ainda retinindo nas vidraças do chalé a canícula da tarde, quando eis na soleira da porta (vindo de onde, Maria?), luminoso, ágil como qualquer colibri ou tico-tico assustado, um senhor crioulo vestido de branco, altíssimo esbelto que-nem artista galã, gingando dá um passo à frente e com meneios e gestos faz-lhe a mais profunda reverência desmanchando-se em amplo sorriso, Arcanjo das Neves, falante gesticuloso, Salve Maria!, oi, é minha saudação, Deus te salve!, mas que são isso minha flor, que espanto, ora oras, não conhece mais os pobres?, não mandais entrar?, um cafezinho?, um licores?, um sente-se por favor e ora vejas, esteje a vontade, enfim sou parente Maria meio primo, o tio Gabriel, está lembrada?, ignorais de onde venho?, lá do Alto dos Marins, venho de lá e boas novas lhe trago: que Isabel a vossa prima, mulher do Zacaria, e veja só, naquela idade está esperando, com efeito, diz-que há de ser filho homem e por nome João há de chamar-se o qual para muitos sígnio de festas será e para outros de contradição e falatórios, povo linguarudo!, que o pai quem não será, quem há de ser, pois o velho Zacaria de cabelo branco e capenga, sua mulher Isabel já não passou da idade?, a língua de trapo do povo descrente, maldizente, e vós minha joia, beja-fror, orvalhos-da-manhã, estrela-dálvia, plena de graça e dengos, entre todas abençoada por Deus-Pai, oi Maria Nazaré, desperdícios de beleza, que desça sobre vós o Divino e te dê força e proteção a você da Conceição e ao futuro bendito fruto do vosso ventre amém!

ali pasmada no halo do sonho pisando absorta os últimos raios do dia, esquecida da roupa e do ferro de passar (ei, perigosamente fumegando, Maria!), distraída do esplendor das dálias e do calor que ainda fustiga as antigas vidraças e as alvas paredes do chalé, mais que nada desligada de si mesma, os brilhantes olhos de jabuticaba por demais imensos de negros no qual Arcanjo das Neves assim de esbugalhados, sem nem piscar como em transe místico, as asas do nariz aflando quais borboletas transparentes no copo da flor, os lindos lábios de pitanguinha madura entreabertos úmidos num suspiro de ai-meu-deus, os braços de jambo e seda caídos ao longo do corpo, e por força do espanto e do calor diferente que por ali subia, de leve amarfanhando o algodãozinho da minissaia estampada, mãos de gavinhas e esponjas, deixa entrever (sem querer, Maria, sem querer!) no crispado gesto involuntário a lustrosa curva perfeitamente torneada dos joelhos em flor e as primeiras suavidades da coxa morena de adolescente bem crescida, puro regalo da natureza, e eis que de repente um afago uma pressão no ventre um estranho calor por dentro… ui!, ai!, um princípio de sonho ou pesadelo?, alucinação?, arrebato?, uma vertigem?, uma viagem relâmpago por esferas e abismos até então fora do alcance de sua cabecinha inocente?, quem sabe…(e quem não sabe, acredite!)

atravessam – nesse preciso instante de magia e sedução – as finíssimas transparências do cortinado de cassa, nácares lilases opala âmbares ouro e chamas, as múltiplas claridades do poente indo incidir nos olhos negros de Maria e no esmalte rosa-claro das unhas descascando quase nada, na pele lisinha de seda jambo e no manso arco dos joelhos levemente à mostra, no arco dos joelhos, refulgindo os quais em breve tremor de espanto e júbilo, gozo e retraído espanto, um tremorzinho que nem te conto, os joelhos em arco apartando-se sem querer como pétalas, joelhos amor-perfeito-de-verão docilmente oferecendo-se ao bico do passarinho para que num repente lhe abrissem (quem?) as portas da fertilidade (as portas da felicidade?), ai!, mas porém essa violência meu deus, esse ímpeto selvagem, essa irrupção a ferro e fogo adentrando furiosamente a carne tenra intocada virgem, esse peso violento forçando comprimindo-lhe as graças, esse jeito de baile na flor, no fumo, na papoula, no ópio, esse balanceio louco, essa forte tontura, será que carece?, haveria de ser?, será?…

aos reflexos do sol poente faz-se quadro luminoso a flor menina Maria da Conceição (entre o singelo do evento e o enigmático da hora, captou-o melhor que ninguém, quem?, Fra Angelico, Giovanni da Fiesole, no austero e não menos luminoso afresco de San Marco di Firenze! …assim o êxtase de Maria na moldura dessa hora de milagre? hum!) mas sem o saber, sem nenhuma pose, apenas consentindo inocente compõe um quadro, outro, ingenuamente esboçando algum dúbio movimento de fragilidade ou mesmo insciência ante tais imperscrutáveis desígnios como para declarar mais tarde que foi sem querer, o gesto de embaraço é pra valer e constar, como quem diz que quando viu e sentiu já tinha acontecido, me aconteceu ué (e tendo assim acontecido num repente de gozo e posse violenta a fim de ai! roubar-lhe a ilusão da inocência, e no entanto mais inocente é Maria, sim e não, conforme…exegeses!, eu por mim recomendo, fazei letras de canção, cantai um hino de louvor!)

transpassa-lhe as têmporas em brasa pungindo dolorosamente um fino zumbido vertiginoso, pequenas línguas de fogo, a voz cantilena do Arcanjo, cascata de graves e agudos, fossem cravos ou agulhas lancinantes o raro som das palavras de há pouco, fosse o crioulo na realidade qual visão (então o que era, Maria?), visão paráclita de santo incorporado como dizem nos terreiros (e Maria seu corpo seu cavalo?), resfolegando parolagem manhosa de cálidas sílabas e gingando e movendo-se num ritmo de mil pandeiros e atabaques falando em línguas que só num sonho ou transe, contos de mil e uma noites, carochinha e tal…

e mais ainda se espanta e admira-se que sem ouvir nem não nem sim, mudo e com igual desenvoltura, em gestos e sorrisos desmanchando-se, de novo em seu terno branco imaculado milagrosamente impecável sem nem uma ruguinha de nada, o melífluo Gabriel das Neves dá-se que meramente vira breu, muito malandro, desaparece em nova e profunda reverência toda cerimoniosa à Rainha das Sete Luandas assim assim se rindo, o malvado, gingando, no fim da tarde desencanta, sobe o morro e nunca mais, ninguém sabe ninguém viu, desencantou, soverteu, missão cumprida (o coiso, ágil milongueiro, zorôncio, findungo!)

só sozinha vai e se mexe, se belisca e cai do êxtase, eu hein, transe de araque, ixe, a cisma de que não fosse o tal Arcanjo nem visão nem sonho nenhum e sim um crioulo malandro cheio das mumunhas, lábia e truques, de novo se apalpa assustada olhando pra um e outro lado a ver se tem gente espiando, por sorte a patroa só chega mais tarde e o patrão também, outro homem afoito sempre querendo coisa, a violência da tarde nos lábios, nas coxas, no ventre, a violência daquele repente, agora já fosse outra, um fogo de mil labaredas corpo adentro, cheiro forte de fumo inchando a garganta e o nariz, estonteando o sentido, a cabeça igual a um balão colorido (ela que nunca tinha fumado nem de brincadeira, era fumo ou que fumo era?), e nem gritar não pode se quisesse, a voz não quer sair, como nos sonhos, e gritar pra quê?, antes fosse pesadelo, não quer pensar, não pensa, não consegue, o chalé rodopiando igualzinho terreiro de Pai-zirimia, ai-meu-deus será que desmaio é assim, é chegada de orixá?

tivesse um gosto ruim de sangue na boca, na língua, e pelo corpo inteiro um mal-estar, um engulho, por fora tudo, de fora a fora, mas principalmente por dentro, um calor delorido, um punhal de fogo atravessado nas tripas ou (eu que sei!) uma alavanca de ferro em brasa forçando as entranhas o fôlego o pensamento…

Vai desligar o ferro Maria e vai tomar um banho, uma ducha demorada e cheirosa com bastante loção e essências, deixa o corpo lisinho e perfumado, limpo, fresco, anda, vai, e descansa um pouco essa graça de flor do campo, beleza tisnada, a santa inocência de intocada virgindade!

[… estava bom, gostoso, gozoso?]

continua…

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(do livro «Quarteto {em si} menor», KindleEdition, Junho.2013)

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Medidas de pão: Brotmaße in Freiburg i. B.

Freiburg im Breisgau!

Entre outras notáveis curiosidades locais:

Gravadas na pedra (Sandstein/arenito) ao pé da torre da Catedral de Freiburg (Münster), para dar-lhes uma aura de legitimidade, as “medidas do pão” na Idade Média, com as respectivas datas inscritas em caracteres romanos.

Freiburg i. B.1280x

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