Traición poética

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
é minha pátria. […]
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
não sei. […] Uma ilha de ternura: a ilha
Brasil, talvez.
VINICIUS DE MORAES, “Pátria minha”

 

Vinicius*, no el poeta bohemio del whisky y del amor
(infinito mientras dure), a quién no llegué a conocer,
aunque coincidiendo en el tiempo, él no, el otro
Vinicius, que se declaraba, sin amargura ni pena,
sin suerte en el amor, y que para beber, nada
de extravagante, pedía cachaça con limón,
sin azúcar eh, no sabía nada de música, nada,
y muchísimo menos de literatura, aún así,
buen amigo de copas, leía a veces un poema,
o mejor prefería escuchar en la mesa de un bar,
después de la cuarta o quinta dosis, doble eh,
con medio limón exprimido, sin azúcar, ese
o aquel poema de la boca del propio poeta,
allí, de cuerpo presente, a veces, y a veces
ausente de espíritu, cachaça no, un daiquirí,
Vinicius, al saber de mis andanzas por otras
tierras e idiomas, bebió de un trago la copa
recién llegada, ¿la séptima?, dio un puñetazo
en la mesa y, ¡hombre!, cómo puedes, no puedes,
eso es traición, desde cuándo eres un traidor,
sí lo sé, intentando calmarle la súbita furia
patriótica, claro, traición a la lengua madre,
ahora mismo la estoy traicionando de nuevo
y además también aprendí a leer y hasta escribo,
¡oye!, Muttersprache, ¿qué? ¿ya estás borracho?
Me río y me explico, lo intento como puedo, pues
entender ni yo lo entiendo, muerta mi madre
sufro ahora un colapso lingüístico, acabo
de adoptar, para burlarme de la insidia,
la hermosa lengua de la madre de mi hijo,
cuya lengua madre, vaya, es la de schiller
doscientos años después, ¿me entiendes?
yo tampoco, Vinicius no sale de su asombro
y pide la décima, doble eh, yo (¡un momento!)
ya voy por el por la por los, bueno,
por el daquirí aquél, el penúltimo,
a ahogar el gusano de la traición… ¡skoool!

(* mi modesto tributo al poeta sambista por sus 100 años de vida… © text@music, 2013)

Não fosse o diabo… {pt}

Não fosse o diabo (da velhinha)

pode me chamar de sem-vergonho
mas não deu outra, saí da loja e levei
teu corpo na retina, sou muito meta-
físico, fiz abstração imediata aguda
prismática do vestido lilá aberto de lado
mostrando a melhor parte da tua coxa
esquerda e da blusa (quase) transparente
com florinhas também lilases faltando
um botão e mostrando ali (sem querer?)
entre um suspiro e um olhar duas flores
redondas lisinhas dum adivinhado
perfume de rosas e tenras folhas silvestres
que se eu pudesse, vou caminhando
pairando vou sonhando tropeço na sombra
de um querubim e quase caio nos braços
de vetusta dama de bengala e óculos
escuros, perdão, minha senhora, mea
culpa, todo compungido e pudoroso
(apesar dos pensamentos streap-tísicos
teu corpo já quase nu para o festim)
dizendo-me a vovozinha num muxoxo
fosse menina-moça, meu lindo, ó,
te convidava agora mesmo pr’aquele
fuzuê, e um risinho seco diabólico,
a ousadia confesso me tirou do sério,
que diabo de velhinha mais afoita
lá se foi a abstração o sonho a hora
morna do sátiro – relambendo-se
de uma safadeza imaginada

(de “Esse mundo é meu”, 2010)

Aretê {pt}

O homem armado
que em clandestinos porões
semi-escuros blindados duros
submete avilta tortura e mata
a um homem atado seminu
sem armas —

identifica-se: bastardo
do ventre mais desgraçado
de mulher nascida!

O homem dotado
de poderes e instrumentos de morte
contra um homem culpado
de nada a não ser de [ameaçado]
resistir à opressão —

revela-se: bastardo
do ventre mais aviltado
de mulher parida!

Entre bastardos
dessa natureza e as vítimas
da opressão mais aviltante
[que um dia entre nós se atreveu]
identifique-se revele-se [que é
verdade e dou fé] a diferença
entre valor e covardia!

{de “Nem ostras nem ostracismo”, Hirschberg 2008}